Entre parentes e lembranças

considerações etnográficas sobre o tomar de conta em meio ao curso de vida em Canto do Buriti-PI

Autores

  • Ana Clara Sousa Damásio dos Santos UFG - Mestranda

DOI:

https://doi.org/10.21680/2446-5674.2020v7n13ID20961

Palavras-chave:

Antropologia, Parentes, Fotografia, Casa

Resumo

Para elaborar a dissertação de mestrado, fiz pesquisa de campo no primeiro semestre de 2019, durante três meses, em Canto do Buriti-PI. Lá, as mulheres de idade com quem convivi, minhas parentes, usavam as lembranças e o lembrar como mecanismos para ordenar um mundo que não é dominado pela escrita, mas sim pela oralidade. As lembranças são uma forma de evocar tempos e experiências vividas. São também feitas e refeitas no momento de contar histórias sobre essas mesmas lembranças. Estas agem como expositoras da vida, como organizadoras do cotidiano, sendo registradas a cada vez em que são contadas e reelaboradas de formas diferentes em cada contar. Ocorre, então, o "labutar-lembrar". Se não se labuta sobre pessoas, lugares, coisas, lembranças, elas são tão esquecidas quanto não-lembradas, apesar de ainda existirem.

Como disse minha avó, Anita, principal interlocutora nesses três meses de campo após não conseguir lembrar da lembrança que iria me contar, “escapou". Lembranças escapam, portanto, é preciso contá-las repetidas vezes como forma de não esquecer o costume de Canto do Buriti. Como denomina Nathan Virgílio (2018), as lembranças surgem da necessidade de organizar acontecimentos vividos e que só são contados porquê de alguma forma marcou o corpo que conta. A rigor, com o clássico trabalho de Eclésia Bosi (1994) desenvolvido em São Paulo com interlocutores com mais de setenta anos em “Memória e Sociedade: lembranças de velhos” aponta, não há como ignorar o tratamento da memória como “fenômeno social”. Não deixando escapar a compreensão de quem estuda memórias e lembranças que as mesmas que emergem de um indivíduo estão demarcadas por todo um contexto relacional e localizado com “a família, com a classe social, com a escola, com a Igreja, com a profissão; enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo” (p. 17).

Essas lembranças também são responsáveis pelos momentos que denominei de “remontar de tempos”. Enquanto caminhávamos pela cidade ou sentávamos em suas varandas, minhas parentes não contavam em ordem cronológica e linear, pois os tempos das lembranças não eclodiam assim no lembrar. Quando contavam, olhavam para determinado lugar e começavam a remontar uma outra cena, vislumbrando aspectos do espaço que não estavam ali no presente. Levavam-me a ver tempos que se mesclavam, se sobrepunham, e coexistiam em uma mesma varanda ou caminhar. Assim, essa maneira de "labutar-lembrar" passou a ser transposta para a minha forma de contar e lembrar imageticamente minhas parentes-interlocutoras em campo. Onde tempos (cores preto e branco com algumas cores) se mesclam no meu “remontar” através das fotografias. Dessa forma, as fotografias seguem o desencadeamento dos momentos em campo que minha avó lembrava de algo e resolvia me contar suas lembranças.

Assim, a fotografia 01 foi quando minha avó me contou do abandono da sua casa da roça, pois todos seus filhos e filhas estavam no mundo [São Paulo e Brasília]; na 02 foi quando ela me contou da morte do seu marido que “trabalhava como um condenado durante a seca de 70 [1970]”; já na 03 quando afirmou que não gostava mais de caminhar nem ir a casa de ninguém, pois estava “empesteada, cansada, não sou mais moça”; a 04 foi no momento em que lembrou de como a sua roça era farta, assim como a do seu vizinho que mesmo véi, ainda conseguia pelejar; na 05 foi no dia ela me contou o quanto era triste não ter mais “força pra tomar de conta das minhas coisas”; na 06 foi no momento que ela me disse que ao final de três meses em campo no qual eu administrava todos seus remédios diariamente que: “é por isso que eu tô grande assim. É o de-comer-comer e o de-comer-porcaria”; a 07 foi quando ela me contou como seu fundo de quintal era cheio de galinhas, porcos, árvores, “mas agora tá assim...”; na 08 foi justamente quando ela afirmou que, ao nos prepararmos para irmos embora do campo e, consequentemente, da sua casa que, “queria mesmo era ficar na minha casa. Pelo menos vou poder levar as coisas daqui pras meninas [suas filhas em Brasília].”.

Assim, as fotografias acionam um contexto em que se pode acompanhar através da minha narrativa imagética um imbróglio que mobiliza imagens e concepções sobre velhice, higiene, autonomia, individualidade e as disputas sobre o controle sobre o sujeito velho através das estórias de vida da minha avó. Como aponta Suely Kofes (1994), as estórias de vida podem ser consideradas “interpretações individuais de experiências sociais”. Nesse sentido, de uma mulher que após envelhecer ficou dependente do tomar de conta da filhas que estavam no mundo tendo assim que sair das suas origens e ir para esse mesmo mundo. Dessa forma, episódios como esses apontavam os interstícios, fragilidades e vulnerabilidades das possibilidades de autonomia e gestão de si, no caso da minha avó. As fotografias foram produzidas com Câmera Canon – EOS T6i com lente Canon EF-S 18-55mm e os ajustes de cor, saturação e brilho foram realizados com o editor para fotografias Photoshop.

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Referências

BOSI, Ecléa. (1994). Memória e sociedade: lembranças de velhos (3a ed.). São Paulo: Companhia das Letras.

KOFES, Suely. Experiências sociais, interpretações individuais. Cadernos Pagu, 3, pp. 117-141. 1994.

VIRGÍLIO, Nathan. Pensa que é só dar o de-comer? Criando e pelejando com parente e bicho bruto na comunidade do Góis-CE. Dissertação apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional - Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Antropologia Social. 2018.

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Publicado

13-10-2020

Como Citar

SOUSA DAMÁSIO DOS SANTOS, A. C. Entre parentes e lembranças: considerações etnográficas sobre o tomar de conta em meio ao curso de vida em Canto do Buriti-PI. Equatorial – Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, [S. l.], v. 7, n. 13, p. 1–11, 2020. DOI: 10.21680/2446-5674.2020v7n13ID20961. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/equatorial/article/view/20961. Acesso em: 29 mar. 2024.